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30 anos da Enchente de Natal: a tragédia que marcou Santa Catarina

Três décadas depois, sobreviventes, bombeiros e moradores relembram a tragédia

Por Ligado no Sul23/12/2025 08h30
Fotos/Divulgação CBMSC

Há 30 anos, Santa Catarina vivia uma das maiores tragédias climáticas que já passaram pelo estado. Conhecida como a “Enchente do Natal”, deixou mais de 28 mil desabrigados em todo o estado, 50 municípios afetados e o registro de 29 mortos. Diversas instituições estiveram unidas para ajudar a população atingida: o Corpo de Bombeiros Militar (CBMSC), a Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC), a Defesa Civil, o 28º Grupo de Artilharia de Campanha e voluntários das cidades.

O resgate das equipes iniciou em 23 de dezembro de 1995 e só foi encerrado semanas depois, em janeiro de 1996. O sul catarinense foi uma das regiões mais afetadas do estado, principalmente as cidades de Timbé do Sul, Jacinto Machado, Forquilhinha e Siderópolis. As ocorrências eram inúmeras: desabrigados, desaparecidos e ilhados; as pessoas necessitavam de socorro em meio à escuridão e às águas revoltas dos rios. A população padecia com o frio por estar molhada, e muitas pessoas haviam perdido seus lares, completamente destruídos pela força das águas, além de familiares.

O início dos resgates

Na época, o coronel da Reserva Remunerada (RR) Vanderlei Vanderlino Vidal era o oficial responsável e comandante do quartel do CBMSC de Araranguá, que havia sido inaugurado há dois dias. Ele relembra como foram os primeiros chamados. “Recebemos a informação de que uma chuva muito forte havia ocorrido em Timbé do Sul e que pessoas estavam ilhadas. Chegaram vários pedidos de socorro, inclusive com a informação de que já havia muitas pessoas desaparecidas e a possibilidade de óbitos. Decidimos deslocar uma guarnição de Criciúma, pois o pelotão recém-inaugurado não possuía estrutura para atuar em salvamento”.

O coronel RR Vanderlino e mais quatro bombeiros deslocaram-se para Timbé do Sul durante a noite, entre chuva e lama. Após mais de uma hora de deslocamento, chegaram ao cenário do desastre, onde já foram recebidos por novos pedidos de socorro das pessoas no local. Um tenente da PM indicou a área do desastre e fez a recomendação para que subissem apenas ao amanhecer, devido ao perigo do local.

Mas Vanderlino e a equipe fizeram jus ao juramento da formação: vidas alheias, riquezas a salvar. “Reuni a guarnição, e a manifestação foi unânime: ‘Tenente, se viemos até aqui, vamos subir para iniciar as buscas’. Reunimos os cabos de salvamento, lanternas, baterias, nadadeiras e iniciamos a subida. O cenário era de escuridão total e, ao iluminarmos o trajeto, vimos que o rio, que antes era estreito, agora era gigante, fora do leito normal. Enfrentamos água e lama até a altura do pescoço em alguns pontos”, exclamou. Ali foram encontradas pessoas em meio às árvores, algumas com vida e outras não.

Dentre as inúmeras ocorrências, a corporação, que já tinha visto o cenário trágico, tentava atuar prevenindo que mais pessoas fossem levadas, procurando retirar a população dos locais onde a água iria desaguar. “Um fator complexo para gerenciar foi que, após as chuvas, o tempo abriu no dia seguinte. Mas nós sabíamos que as águas elevariam o nível do rio na região de Araranguá; só que as pessoas se recusavam a deixar suas casas, pois havia sol. Resultado: tivemos que evacuar e resgatar muitas famílias na noite do dia seguinte, quando as águas subiram na região do bairro Barranca”, relembrou o coronel RR.

O comandante da operação explica como foi o desafio de enfrentar um ocorrido dessa magnitude. “Foi uma operação extremamente desafiadora: coordenar militares e civis, liderar a comunidade para que mantivesse a calma, exaltando sua capacidade de resiliência; responder à imprensa, ávida por informações para orientar a comunidade — aliás, papel fundamental e que deu muito certo; cooperar com os colegas de farda, distantes de suas famílias no período de Natal e festas de Ano Novo; dormir molhado e comendo pouco, junto com a tropa, etc. Mas sermos reconhecidos pela comunidade por onde passávamos foi recompensador”.

Em meio ao caos, vidas perdidas, pessoas desaparecidas, fome e cansaço, houve um cenário, diga-se, de “esperança”. “Com toda a correria, a gente até esquece que dia é aquele… Em dado momento, vieram até mim o cabo Nilson Gonçalves e o soldado Dalmir Teixeira e disseram: ‘Comandante, Feliz Natal!’. Até hoje me emociono quando lembro disso”, finalizou o comandante.

Pela data festiva, alguns bombeiros estavam de folga nas comemorações de Natal, e para o subtenente Laércio Pedroso não foi diferente. Ele estava almoçando na casa do sogro no dia 24, quando uma viatura, com um bombeiro, chegou informando que estava acontecendo uma enchente e que estavam chamando todo mundo. “Fui até a minha casa, peguei a farda e me desloquei para o quartel. Foi um pouco estranha aquela correria, pois esse seria o primeiro Natal que eu iria passar com o meu filho mais velho, recém-nascido, além de estarmos todos reunidos para uma data festiva, e eu ter que sair para cumprir minha missão”, contou o subtenente.

O subtenente RR Sérgio Joaquim atuou na região de Siderópolis, onde, para ele, os maiores riscos eram os deslizamentos de terra, a correnteza das águas e a lama, pois precisavam realizar os resgates e caminhar a todo momento pelas encostas das montanhas. “Durante uma caminhada pela mata, à beira da encosta de uma montanha, enquanto tentávamos chegar ao outro lado das margens do rio, percebemos rachaduras no terreno e, logo em seguida, decidimos sair daquele local. Em determinado momento, presenciamos o deslizamento de parte da montanha exatamente no local por onde passávamos”, lembrou Sérgio.

Outra cena permanece viva na memória do subtenente RR. “Não foi fácil localizar as vítimas, e ficou marcada na minha memória uma vítima que estava completamente soterrada pela lama, no meio da mata, sendo localizada apenas porque a sua mão havia ficado para fora”, relatou Sérgio.

Almir Fernandes, na época, atuava como auxiliar médico-legal da Polícia Civil. Ele trabalhou nas cidades de Criciúma, Nova Veneza, Siderópolis, Içara e Balneário Rincão, no trabalho de recolher os corpos das vítimas. “Atuei muito na cidade de Nova Veneza e região; os bombeiros localizavam as vítimas e nós as recolhíamos”, relembrou Almir.

Outro momento marcante ocorreu no fim do ano. “No dia 31, fomos chamados para outro resgate. Caminhamos por mais de uma hora à noite, em locais de difícil acesso. Quando estávamos retornando do local, trazendo a vítima, como era uma área alta, tipo um morro, avistamos fogos de artifício, simbolizando a virada do ano”, recordou. O último resgate aconteceu no dia 6 de janeiro.

A evolução dos equipamentos e da resposta operacional

Há 30 anos, a qualidade e disponibilidade de equipamentos para os bombeiros era escassa. O subtenente RR Dalcionei Valim prestou apoio a Timbé do Sul e relembra sobre as dificuldades enfrentadas. “Naquela época a gente tinha muito recurso humano, mas pouco equipamentos para trabalhar, era só a nossa farda. Para se ter uma ideia, nossa alimentação era só um pão e leite, e quando tinha. A gente comia junto das vítimas e ficamos dias sem dormir, pois era um local de difícil acesso e a gente era o único socorro para aquelas pessoas”, reviveu o subtenente RR Valim.

Hoje, o CBMSC possui uma ampla gama de equipamentos, viaturas, cursos e treinamentos específicos. O comandante do 4º Batalhão de Bombeiros Militar, que tem como circunscrição o sul catarinense, tenente-coronel Henrique Piovezam da Silveira, enfatiza as melhorias em comparação à época. “Sou bombeiro há 23 anos e pude acompanhar um pouco das nossas melhorias, que buscam sempre prestar o melhor atendimento possível à nossa população e garantir mais segurança para o nosso efetivo. Temos equipamentos primordiais para o atendimento a esse tipo de ocorrência, como jet ski, botes, lancha, drones e fardas específicas”, pontuou.

A tecnologia e a parceria com outros órgãos, como a Defesa Civil e as prefeituras municipais, facilitam a previsão desses desastres. “Trabalhamos sempre em conjunto nesses desastres naturais, com apoio no corte de árvores, retirada de pessoas em áreas alagadas, serviços de limpeza pós-enchente e no preparo antecipado. Sempre que há previsão de fortes chuvas, já estamos monitorando as áreas que possuem histórico de alagamentos para, se necessário, prestarmos socorro. Além disso, deixamos todos os equipamentos testados e preparados caso seja necessário o deslocamento”, comentou o comandante Henrique.

Além de tantas melhorias, o CBMSC possui também a Força-Tarefa, que foi criada em 2011, por conta dos desastres que o estado de Santa Catarina sofre. Trata-se de uma equipe de bombeiros militares com habilidades técnicas específicas, devidamente selecionados, com rápida capacidade de mobilização e deslocamento. Além disso, os profissionais são treinados para respostas de busca e resgate em desastres ou calamidades públicas.

Atualmente, cada um dos 15 batalhões possui equipes de Força-Tarefa, o que permite que atuem de forma descentralizada e autônoma. Isso significa que cada unidade tem capacidade própria de planejamento, decisão e pronta resposta, sem depender exclusivamente de deslocamentos a partir da capital ou de outras regiões. Na prática, essa autonomia garante maior agilidade na mobilização dos recursos humanos e materiais, possibilitando o início rápido das operações e uma resposta mais eficiente às ocorrências, especialmente em situações de desastre ou calamidade pública.

Relatos de quem viveu a tragédia

Anderson Rufino Vieira, hoje com 41 anos, foi um dos sobreviventes da tragédia, mas 11 de seus familiares, entre tios, tias e avós, não tiveram o mesmo desfecho da história. Anderson, aos 11 anos, passou pela enchente no costão da serra, entre Nova Veneza e Siderópolis. “Era na véspera do Natal e nos reuníamos na casa da minha avó para celebrar. Começou a chover e não parava mais, e, quando foi à noite, o rio foi enchendo cada vez mais. Nós tentamos sair e ir para um local mais alto, mas, ao chegar lá, a água já tinha tomado conta. Daí voltamos para casa de novo e começamos a rezar todos juntos. Foi quando veio uma bomba d’água e levou a casa rio abaixo”, recordou Anderson.

Depois disso, Anderson não avistou mais ninguém. A água o arrastou por cerca de 800 metros, até que ele ficou preso em uma árvore, com água até o pescoço. “Quando amanheceu, subi rio acima para encontrar alguém. Avistei a casa do meu tio, onde eles estavam ilhados também. Daí fiquei lá uma semana; eles cuidaram de mim, pois eu estava com as pernas todas machucadas. Após uma semana, fui resgatado por um helicóptero”. Anderson passou 40 dias no hospital. Hoje, mora em Treviso, é casado com Bruna e tem dois filhos, Luís e Manuela.

Wilson é morador de Timbé do Sul há mais de 60 anos e é proprietário do estabelecimento “Bar e Museu do Alemão” há 32 anos. O local onde ele mora não foi tão atingido, mas ele guarda jornais e algumas recordações da tragédia. “Aqui no bar fica a alguns quilômetros de onde a enchente aconteceu. A tragédia estava acontecendo e a gente não sabia de nada. Só víamos que a luz ficava caindo e havia um cheiro muito forte de barro. Depois começamos a ver os carros de bombeiros e da polícia chegando, e aí fomos sabendo da tragédia”, relatou.

No bairro onde Wilson morava, não havia chovido tanto, e por isso o ocorrido pegou muitos de surpresa. “Não veio uma chuva tão forte, por isso ninguém estava esperando algo desse tamanho”.

Ele se recorda de uma das histórias que marcou a tragédia. “Teve uma mulher que caminhou alguns quilômetros com o filho bebê no colo. Quando ela percebeu, ele já estava morto. Ela teve que soltar o neném e ficou grudada em uma árvore. Um senhor escutou os gritos de socorro dela na madrugada e a resgatou”.

Além do número de mortos registrados em Timbé do Sul, contabilizados em 16, a tragédia foi uma das piores já vistas por Wilson. “Muitas pessoas perderam as casas por completo, não sobrava nada para identificar onde moravam. Tinham que recomeçar do zero, sem os animais e sem as terras, que ficaram tomadas por lama, pedras e madeira. O próprio rio mudou de percurso algumas vezes e isso afetou toda a agricultura também, com essas mudanças”, falou Wilson.

Ámida Tiscoski é moradora de Forquilhinha e presenciou a enchente na cidade. No município, não há registros de mortes, mas muitas pessoas perderam os móveis de casas e lojas, e relatos indicam que a enchente na cidade iniciou no dia 24. “Foi assustador, pois foi muito rápido que a água subiu. Entrou dentro da minha casa e perdi o carpete e os móveis, sem contar aquele cheiro de podre. Alguns dias depois, a água veio novamente; foi mais baixa, mas trouxe muita sujeira. Lembro que passava a patrola para realizar a limpeza das ruas”, lembrou Ámida.

O casal Armino Westrup e Maria Augusta Casagrande Westrup morava em um prédio em Forquilhinha e tinha uma loja de material de construção. Eles relataram como foi o início da enchente. “Uma das maneiras de comunicar algum acontecido na época era o sino da igreja. Sempre que havia alguma coisa, eles tocavam o sino da igreja matriz para avisar as pessoas. Na enchente de 95, eles tocaram, e as pessoas costumavam levar os carros para a igreja matriz, que é uma das partes mais altas da cidade”, relatou Maria Augusta.

A água subiu rápido e demorou a baixar. “Eu liguei para o meu irmão, que tinha cartório na época, e não deu nem tempo de ele vir subir as coisas. E, na nossa loja, não entrou água porque colocamos vários sacos de cimento nas portas; sacrificamos algumas bolsas de cimento para salvar a loja”, relembrou Armino.

O papel da imprensa na cobertura da enchente

Uma das profissões que marcou história nessa tragédia, foram os jornalistas. Muitos dos registros e dados hoje conhecidos, foram relatados por eles na época. Em meio aos destroços e o cenário trágico, eles faziam o possível para relatar os trabalhos e informar a população da tamanha tragédia que ocorreu.

A enchente foi o motivo de um jornal impresso iniciar. O jornal Volta Grande foi criado em 25 de janeiro de 1996, na cidade de Jacinto Machado. E nasceu da necessidade de informar os acontecimentos e os estragos causados ao meio ambiente na maior enchente até então conhecida “Natal de 1995”. “Eu já trabalhava nessa área da comunicação, e nos dias da enchente, muitas pessoas me ligavam, moradores, que queriam relatos do que tinha acontecido, então percebi a necessidade desse veiculo na região. A nossa capa, inclusive, foi sobre um mês da enchente”, comentou a fundador do jornal, José Mota Alexandre.

A jornalista Marli Vitali, na época, estava iniciando na profissão e foi até a região de Timbé do Sul, em janeiro de 1996, onde ainda havia destroços da enchente. “O cenário ainda era muito feio. Parecia que tinham pegado uma faca e ‘raspado’ parte da serra. A gente só via clarões no meio da mata, de cima até embaixo. E muita pedra, tronco, entulho nas margens dos rios. Tudo que desceu da serra veio arrastando e levando embora. Tinha pedras do tamanho de um carro que rolaram serra abaixo. Não tinha como ter sobrevivido quem estava no caminho”, relatou Marli.

O memorial e o Poço do Violão: marcas da força da água

Um dos bairros mais afetados em Timbé do Sul foi a comunidade da Figueira Bordignon, onde foi construído um memorial em frente à Igreja São Pedro. O memorial carrega o nome das 16 vítimas que vieram a óbito na tragédia e a frase “A água levou… a lembrança ficou”. Dentre os nomes, cinco eram pai, mãe e filha, além de dois primos da mesma família. Somente o filho do casal sobreviveu e presenciou a perda de seus familiares.

Próximo à igreja está localizado um dos pontos turísticos mais procurados da cidade, o Poço do Violão, conhecido pelo visual extraordinário e pelas águas cristalinas. O local surgiu em decorrência da força da água, que fez com que o rio alterasse seu curso natural e começasse a represar. Junto da água, desciam terra e árvores, formando barreiras que se rompiam sucessivamente até a formação de uma grande represa. Segundo relatos, o ponto de maior represamento foi justamente onde hoje está o Poço do Violão.

O que dizem a geologia e a meteorologia

O estudo, “Timbé do Sul – Jacinto Machado: Avaliação preliminar da extensão da catástrofe de 23–24/12/95”, realizado por geólogos ligados ao Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) analisou as causas e os impactos da enchente, com destaque para os municípios de Timbé do Sul e Jacinto Machado. Segundo o levantamento, o desastre foi provocado por um evento extremo de chuva concentrada entre os dias 23 e 24 de dezembro de 1995, com volumes muito acima da média histórica.

A precipitação intensa em curto intervalo de tempo saturou rapidamente o solo, dificultando a infiltração da água e favorecendo o escoamento superficial, o que resultou em enchentes, deslizamentos de terra e severos danos ambientais e estruturais.

A meteorologista Marilene de Lima, da Epagri/Ciram, relata que, nessa época, a meteorologia ainda estava em fase inicial em Santa Catarina, e o Governo do Estado foi um dos primeiros do Brasil a contar com um serviço meteorológico voltado à previsão do tempo. “A chuva começou no dia 23 e não deu mais trégua em alguns locais, com volumes elevados. Em relação aos volumes de chuva, muitos dados não ficavam automaticamente armazenados, pois muitas medições ainda eram feitas de maneira manual. Além disso, devido às chuvas, alguns locais perderam o acesso e não foi possível registrar dados de determinadas estações”, explicou Marilene.

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